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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Biólogos veem complô para barrar artigos

Vista de fora, a pesquisa com células-tronco parece uma das áreas mais pujantes da ciência atual, mas alguns dos principais especialistas do ramo decidiram lançar um manifesto contra a maneira como os estudos sobre o tema são selecionados para publicação nas principais revistas científicas. Esse "vestibular" teria se transformado numa panelinha, que barra a divulgação de dados importantes para manter seu próprio prestígio, acusam eles.

As críticas do grupo, capitaneado por Austin Smith, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), e Shinya Yamanaka, da Universidade de Kyoto (Japão), miram o chamado "peer-review", processo de revisão por pares que é o padrão aceito para decidir se dada pesquisa merece ser publicada.

Num cenário ideal, a revisão por pares seria o modo mais objetivo de avaliar a qualidade de um estudo. O texto original de um artigo científico normalmente é repassado para três ou quatro revisores, os chamados "referees", que trabalham na mesma área que os autores. A ideia é que, tendo sua identidade protegida, eles teriam conhecimento e objetividade para flagrar erros e "separar o joio do trigo" entre os estudos.

Reclamações sobre falhas no sistema são relativamente antigas e recorrentes, e a pesquisa com células-tronco é uma área especialmente visada. Vistas há mais de uma década como o futuro da medicina, tais células têm potencial para assumir a função de qualquer tecido do organismo, o que traz a possibilidade de regenerar tecidos e órgãos. Países ricos têm investido bilhões de dólares para transformar a promessa em realidade, com grande competição entre grupos científicos.

No manifesto, assinado por Smith, Yamanaka e outros 12 cientistas, a reclamação é que "o padrão das publicações no campo (das células-tronco) é muito variável. Artigos que são cientificamente falhos ou contêm apenas incrementos técnicos modestos com frequência atraem atenção indevida. Ao mesmo tempo, a publicação de achados verdadeiramente originais pode ser adiada ou rejeitada". Eles também dizem que "ocasionalmente", tiveram "experiências com revisões obstrutivas ou pouco razoáveis".

Panelinha - Em entrevista à rede britânica BBC, Smith e seu colega Robin Lovell-Badge foram mais incisivos. Para Lovell-Badge, "a coisa está virando uma panelinha, na qual só os artigos que satisfazem esse grupo seleto de poucos revisores, que se consideram pessoas muito importantes no campo, são publicados". Segundo Smith, "artigos têm sido "segurados" por meses e meses porque revisores pedem novos experimentos que não são justos nem relevantes".

Para a dupla, a motivação dos "referees" é, em vários casos, ganhar tempo para que eles e seus parceiros consigam publicar dados semelhantes antes dos concorrentes. A Folha procurou Smith e Yamanaka, mas eles não responderam aos pedidos de entrevistas.

Christine Hauskeller, socióloga da Universidade de Exeter (Reino Unido) especialista em produção científica, contou à Folha que tem ouvido críticas à revisão por pares na área das células-tronco há quatro anos.

"Não tenho uma boa explicação sobre por que as queixas só apareceram agora e foram feitas por esse grupo de cientistas, que não poderíamos chamar de pesquisadores marginalizados", afirma. Para ela, a disputa por reputação e verbas explica parte do problema.

"A academia se tornou altamente competitiva de modo geral", diz. "Num campo como o das células-tronco, obter sucesso rapidamente é crucial para a sobrevivência acadêmica. O contraste entre os valores intrínsecos do ideal da revisão por pares e a necessidade mais realista do sucesso profissional é óbvio."

(Fonte: Folha Online)

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